Embarcando na Primeira Estação

O ponto de partida é Bahnhof#0; aperte os botões corretos e boa jornada pelo tempo.

segunda-feira, agosto 31, 2009

Bahnhorf#10 - As meninas

de: 30
para: 1656


O cachorro não pára de olhar para mim.
Fixo o meu olhar nele também.
Tenho medo.

Sei que na sala ao lado fica a despensa da comida e vou conseguir o que preciso, mas para isso, tenho que ir até lá e passar pelo cachorro que parece tranquilo para os outros, mas não tira os olhos de mim. Preciso ter atenção.

Ao fundo, no vão da escada, o homem me assiste sem me importunar. Ele sabe da minha presença inesperada no lugar. Lembra o rosto do Prof. Manrat.

Atrás de mim o casal real olha a cena familiar. Posso vê-los no espelho.

Os cabelos da infanta Margarida são fios de ouro ondulados e inebriantes. As anãs fazem pose sem parecerem bobas da corte.

Velasquez poderia dar um tempo na sua arte para que todos se movimentassem e esse cão sumisse da minha frente. Acho que não vou conseguir nada para comer por aqui.

Apenas contemplar essa cena maravilhosa e inesquecível, digna de uma sala especial de um museu no futuro.

Só poderia considerá-la uma obra prima se conseguisse pegar um resto de bolo, mas...

Bahnhof#9 - O sal da montanha

de: ?
para: 30

O número de pessoas na montanha passava de mil.

Do fundo não conseguia ver o centro da atenção e muito menos escutar o que todos observavam com o silêncio da alma.

Passei entre as pernas, as mochilas e bastões, pelas crianças e idosos. Me aproximei daquele homem pardo que falava mansamente sobre ser bem aventurado.

Tanta coisa importante que ele pronunciou e me lembro claramente do "felizes os que que tem fome e sede de justiça, porque serão saciados."

Falou em saciar a esperança, a vontade de ver um mundo melhor, espalhar a misericórdia por todos os terrenos mundanos. Ser sal da terra.

Até esqueci da minha fome animal.
Me alimentei das palavras lindas e densas, como maná dos céus.

Voltei para o fundo, a voz dele foi sumindo, as palavras jamais.
Lembrei-me do Prof. Manrat e sua calma, seu carinho para comigo.

Botões em sequencia e a montanha ficará para trás.

Bahnhof#8 - Dores

de: 1912
para: ?

Agora são raros os momentos de convulsão mas muitas vezes sinto dores terríveis na cabeça.

Intermináveis apitos agudos me assolam e perco a noção do tempo, a vontade de me alimentar e a agradável ansiedade de conhecer pessoas e lugares.

Sei que as embolizações feitas pelo Prof. Manrat no laboratório foram de relativo sucesso mas apenas eu sei o que me dói, o que me perturba, a angústia da dor inesperada. Meu corpo fica encharcado de um suor inesperado e incontrolado.

Fecho os olhos, cerro os dentes, tento respirar mais tranquilamente.

Do mesmo jeito que a dor vem, ela vai.
O jeito é ir.
O jeito é continuar a viagem sem stress.

terça-feira, agosto 18, 2009

Bahnhof#7 - O Majestoso

de: 1579
para: 1912

O salto no tempo foi grande.
Dez ou quinze minutos de tonteira e pronto, estou em um dos meus locais prediletos para conseguir alimento fresco e saudável: o cais.

Pode ser de rio ou de mar, mas prefiro o marítimo: a imensidão da água, a quantidade de sementes disponíveis e encontro outros seres parecidos comigo a correr no escuro dos armazéns.

Estou no porto de Southampton, Inglaterra, de barriga cheia, vendo a movimentação frenética dos seres humanos embarcando nos navios com suas malas cheias de roupa. Não preciso de malas, não preciso de roupas. Sou despojado.

Aquele navio com 4 grandes chaminés coloridas me chamou a atenção. É muito grande. É majestoso. Alguns roedores embarcam pelas cordas em direção à embarcação. Tenho vontade, mas não posso abandonar minha máquina temporal. São coisas que não posso me dar ao luxo de arriscar. Entro, não consigo sair e ficarei o resto da minha vida em um lugar só.

E se o barco afunda ? Nem pensar. Fica o desejo de navegar por esse mar gelado. A impressão que dá é que os botes salva-vidas não comportarão as mais de 3.500 pessoas que embarcam no maior objeto móvel construído até hoje pelo homem.

Ainda consigo ver o nome do navio ao deixar o cais: Titanic.

Nunca mais vou me esquecer da imagem daquele barco sumindo no horizonte em direção a outros portos. Deve ser muito interessante viajar assim. Mas vou ficando por aqui em terra firme.

Botões vermelho, branco e vermelho e espero que todos cheguem bem ao destino que a vida reserva a cada um.

terça-feira, agosto 11, 2009

Bahnhof#6 - Mensageiro das Estrelas

de: 2002
para: 1579

Resolvi mudar de século, mas não de país. Permanecerei na Itália para não perder os timbres de Enio.

O salto de centenas de anos me deixa sem condições de raciocínio. Fico quase 15 minutos em transe indesejável.
Desperto e disparo pelas ruelas da cidade.

Passeio pela instabilidade do solo arenoso de Pisa e ligo as paredes das casas rapido e silenciosamente. Procuro por alimentação. Encontro com facilidade.

Quando estou cansado ou com fome, lembro de Prof. Manrat. Onde estará ? Mistura de saudade e despreparo emocional para essa navegação temporal.
A torre liga a terra ao céu. Canal entre o fato e o divino.

Olho as estrelas radiantes que cortejam a destemida lua cheia que por sua vez banha a Praça dos Milagres sem pressa ao longo da noite. As noites escuras são mais longas. A lua acha que não será desvendada tão cedo. Tolice.

Sobre a sombra da torre, já torta desde meados do século 12, o filho de Vincenzo, um menino iluminado, observa o céu. Fecha os dedos tocando a palma formando um círculo com a mão e coloca sobre os olhos para ver melhor o céu escuro e suas nuances.
Olho seu silêncio genial.
Está extasiado pelas descobertas celestiais.

Fico pensando: quando Galileu crescer, irá contestar Aristóteles, construir a primeira luneta astronômica, apoiar Copérnico e enfrentar a inquisição, simplesmente porque parou para contemplar a bola branca enorme no manto escuro da noite ?

Percebo que a criança será o verdadeiro Sidereus Nuntius (Mensageiro das Estrelas) de toda a humanidade. E ele sabe disso. Abaixa as mãos, rabisca inúmeros números no chão como se fosse uma romance sem fim. A matemática para Galileu é o alfabeto com que Deus escreveu o universo.

Olha para o céu, para o chão, diversas vezes, sorrindo em minha direção, fala:

- Não me sinto obrigado a acreditar que o mesmo Deus que me dotou de sentidos, razão e intelecto, pretenda que eu não os utilize.

Antes que ele os utilizasse em me capturar, corro sob o luar em direção ao rio, sem olhar para trás ou para as estrelas. Nas margens do rio tem sempre resto de comida.

domingo, agosto 02, 2009

Bahnhof#5 - A Missão

de: julho 2009
para: 2002

Entro sorrateiramente pela platéia e me escondo entre as poltronas durante o ensaio na Arena di Verona.
Que lugar lindo !!! Deve ter resto de comida em algum canto.

No palco, o maestro de óculos conduz o ensaio da 0rquestra nos acordes da maravilhosa trilha sonora do filme A Missão, de 1986 do diretor Roland Joffé, para a apresentação triunfal da noite.

Enquanto flutuo entre os acordes pujantes lembro que Enio Morricone nunca ganhou um Oscar por trilha sonora. Os premios inventados pelos humanos não significam nada. Bah !!!

A missão de Enio, além de trabalhar com mestres da direção como Pasolini, De Palma, Tornatore, Roland Joffé, Tinto Brass, Bertolucci, Lina Wertmuller, Polanski, Almodovar e Sérgio Leone, talvez tenha sido congelar para sempre os sustenidos em nossos ouvidos na sala escura do cinema.

Ficaria aqui para sempre, beliscando migalhas de harmonia do naipe de cordas. Não tenho mãos para tocar nenhum instrumento, mas tenho ouvidos para ser agraciado com a música dos deuses.

Acho que tem resto de chocolate no fim dessa fileira.

Mi vermelho, sol branco, si azul.