Embarcando na Primeira Estação

O ponto de partida é Bahnhof#0; aperte os botões corretos e boa jornada pelo tempo.

quinta-feira, dezembro 24, 2009

Bahnhof#22 - A manjedoura

de: 2009
para: ano zero

A noite estava estrelada.
Manto escuro de infinitos pontos cobriam nossos olhos.

Perto de mim, um estábulo, alguns bichos soltos, o casal.

A mulher, grávida, fechava os olhos numa mistura de preocupação e fé. Mãe e trindade.
Afinal, o poderoso fez nela maravilhas.

Me aproximei, sem chamar atenção dos animais para assistir ao espetáculo natural da vida.
E o menino nasceu.

Para a alegria do mundo, dos pais, dos céus, dos animais, das mulheres, das prostitutas, dos cobradores de aluguel e até dos fariseus e saduceus.

Quando parti, uma estrela guia tomava o céu iluminando os novos caminhos dos seres desse planeta.
Que todos tenha vida, vida em abundância.

quarta-feira, dezembro 09, 2009

Bahnhof#21 - A Cabana

de: outro lugar
para: 2009

A neve, fresca sobre as folhas ainda verdes dos pinheiros, lembra cobertura de chantilly insólita na floresta densa.

Faz frio, muito frio, mas suportável, como tem sido os dias.
Tente achar uma noz, um pedaço de comida abandonada, qualquer coisa que venha a satisfazer o vazio do meu estômago e por conseguinte, o hiato do meu ser abandonado.

Os humanos, pelo menos alguns deles, dizem acreditar em uma entidade superior que os protege, ampara, dá esperança, cria situações de luz, de flores em pleno inverno da alma.

Sou cobaia. Nada creio de espírito. Vivo. Apenas vivo.

A cabana está abandonada, velha, largada no meio das altas árvores que parecem tocar a origem do frio que cobre meu pêlo.

Não ouso entrar. Sabe-se lá quais são as armadilhas que esperam o visitante.

A menina surgiu na varanda, olhou para o infinito, pareceu sorrir para mim. Posso ver o broche delicado da joaninha no vestidinho vermelho e o nome na fina pulseira dourada: Missy.
Ela olha pela porta entreaberta e finge ouvir alguém que a chama para dentro da morada.

Não consigo ver ninguém, além dela.
A menina entra saltitandom, retorna para o calor dos braços de alguém.

Kiss me.
Tente me beijar, medo.
Tente me alcançar.
Estou indo.

segunda-feira, novembro 30, 2009

Bahnhof#20 - Ainda atônito

de: qualquer lugar
para: outro lugar

Nem prestei atenção onde fui parar depois de tudo que me aconteceu.

Saí na esquina de uma rua movimentada com uma esquina mais movimentada ainda. Noite total, luzes, movimento de pessoas, diversão e trabalhadores.

Amparei-me na lateral metálica da banca de jornal.
Reparei nas manchetes do jornal fresquinhas.

Um título dava ênfase a nova lei no interior do estado onde os feirantes estão proibidos de gritar "madame, olha o peixe fresco, dez reais a manjuba."

A outra manchete, em cor vermelha, destacava o assassinato por faca de um estudante com menos de 17 anos na saída de uma boate. O que fazia um rapaz em plena semana de aula, saindo de uma boate de madrugada ? O que o teria levado a se envolver nessa briga armada ? Onde estão os pais desse rapaz ? Chorando agora ?

Lei para proibir o grito na rua e um jovem gritando por socorro sem ser escutado.
Esses seres humanos...

Vou ficar mais um pouco por aqui, respirar, fechar os olhos para me recuperar e sair na jornada do meu destino.

quinta-feira, novembro 19, 2009

Bahnhof#19 - O desespero

de: 1927
para: qualquer lugar

Sem rumo, entrei na máquina sentindo-me perturbado.

Nunca havia sido tocado pelas asas da morte de tão perto. Presenciei cenas infames de perdas de vida, mas sempre de humanos, seres estúpidos que habitam o planeta como se o mesmo tivesse sido feito exclusivamente para eles.

Agora, o pulso alado negro aterrisou, não ao meu lado, mas dentro de mim e levou a minha companheira. Sem negociar, sem conversa, implacável sedutora de seiva.

Não pude fazer nada. Mas estou sereno.
Deixei-a para ser consumida por outros seres da cadeia biológica.

A companhia dela me satisfazia, percorríamos lugares em busca de novas descobertas.

Preciso refazer o meu caminho. Tentar encontrar o Prof Manrat.
Tentar encontrar o sentido da vida.

Botões vermelho, branco e azul.

Bahnhof#18 - Sem reação

de: 340 a.c.
para: 1927
Minha companheira continua muito mal e febril.
Saí da Grécia em direção a tempos mais modernos, com a esperança de que consiga uma medicação para melhorar o estado de saúde dela.
Tive receio em voltar para o laboratório do Prof. Manrat e encontrar mais destroços causado pela guerra entre os homens. Ou seria receio de topar com o próprio professor ? Não sei o que ele faria comigo, ainda mais depois que furtei deliberadamente a máquina dos sonhos da vida dele.
Mas fui parar em outro laboratório, do Dr. Fleming.
Ele parece envolvido com algumas experiencias mas parece meio distraído. Deixou uma amostra de bactérias destampada. Desse jeito elas serão contaminadas pelos microorganismos que estão no ar. Todo mundo sabe que isso vai dar fungo...
Acho que ele não vai resolver o meu problema.
Vou procurar outro cientista mais capaz.
Ela não está reagindo. Preciso sair daqui.

segunda-feira, novembro 09, 2009

Bahnhof#17 - As fases da lua

de: 1967
para: 340 a.C.
Até agora não entendi o que aconteceu.

Programei a máquina temporal para uma data e vim parar em outra, muito mais distante do que estava planejando.

Devido ao salto muito largo de séculos, minha companheira de viagem está desmaiada, como se um eclipse passasse sobre ela por tempo indeterminado.

Voltei para a Grécia, muito calor, mesmo de noite.

Um senhor, meio parecido com o tal Pitágoras de jornadas anteriores, olha o céu apaixonadamente e rabisca algo sob a luz de velas.

Seriam escritos lógicos, metafísicos, morais, políticos, sobre física pura, éticos ou simples retórica de um filósofo e pensador grego ?

Aristóteles marca as fases da lua e determina com exatidão o fenômeno. Conclui que o satélite natural da Terra é um corpo celeste iluminado e não luminoso.

Desse jeito me apaixono pela lua também.

Minha companheira está com a respiração lenta.
Preciso cuidar dela, afinal "devemos tratar nossos amigos como desejamos que eles nos tratem."

Quantas precauções e preocupação para o sentido da vida.

Tenho dúvidas em ficar mais um pouco ou tentar sair desse calor.
Acho que tenho que arriscar. Nada na vida é exato. Nada é permanente.
A alegria pode ser uma fase. Nova ou cheia...

Botões em sequencia e vamos ver o que acontece.

quinta-feira, outubro 08, 2009

Bahnhof#16 - Recuerdo da Selva

de: 490 a.C.
para: 1967

Corríamos por entre as sombras das árvores da floresta tropical sem determinação de tempo. Comíamos o que aparecia. Plenas férias em terras bolivianas.

Avistamos um casebre sem porta, sem janelas.

Dentro, um homem cansado, de barba, estava só, mas parecia abandonado. Pela sorte, pela vida, pelos companheiros de luta, pelos sobreviventes da liberdade. O esforçado sorriso que soltou parecia que aguardava-nos para uma última conversa.

- Não há fronteiras nesta luta de morte, nem vamos permanecer indiferentes perante o que aconteça em qualquer parte do mundo. A vitória nossa ou a derrota de qualquer nação do mundo, é a derrota de todos...

Paramos e ficamos escutando-o contar suas aventuras. A impressão que tínhamos é que ele também possuia um máquina temporal pois nascera na Argentina, subira de moto toda a América Latina, atravessou o golfo do México para aprender a fazer revolução em Cuba ao lado de Fidel Castro e agora estava abandonado ao acaso em plena selva.

Parecia calmo e ciente do que estava para acontecer.

Passos fora da casa e homens de farda, de língua estrangeira, o executaram covardemente. Como se ele pudesse se defender de algo. Defendeu a luta por momentos melhores. Lembrei daquela rainha e sua guilhotina. Como os seres humanos se auto-executam sem hesitar. Muito irracional para o meu pequeno cérebro de cobaia.

Ficamos ao lado do corpo por muito tempo. Chegamos a acompanhá-lo no helicóptero até um hospital para ser feito a autópsia. Uns oficiais americanos culpavam os militares bolivianos do assassinato e vice-versa. Vimos tudo. Fomos testemunhas. Na confusão antes de cremarem o corpo do morto para que não virasse culto de peregrinação por fanáticos no futuro, mordi o dedo direito de Ernesto e guardo os ossinhos até hoje na máquina temporal.

Minha companheira assistiu a tudo e tremendo exclamou:

- Se somos capazez de tremer de indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos companheiros.

Botões em sequência e partimos. Tristes.

Bahnhof#15 - Escola de Pensamentos

de: 1793
para: 490 aC

Nunca tinha voltado para o calendário antes de Cristo. Arrisquei procurando um momento de sossego, acreditando que antigamente o planeta Terra fosse menos agitado.

Chegamos na Grécia sob um calor insuportável e imediatamente procuramos uma sombra para o descanso e lanche.

- Voce está bem ?
- Estou.

Ouvir a voz, mesmo que baixa, da minha companheira de viagem foi um presente.

Enquanto comíamos despreocupados, escutamos vozes de um grupo de pessoas, adultos e jovens, que pareciam discutir algumas idéias interessante. Falavam que todas as coisas eram foramdas por quatro elementos (terra, água, ar e fogo) e que o elo entre esses elementos era o número. Pareciam matemáticos e sábios.

Ao centro do grupo, um senhor de estatura mediana, quase calvo, observava todos com um semblante tranquilo e rabiscava com uma longa vareta no chão o desenho de um pentagrama.

- Se eu utilizar a ração áurea dessa figura e projetar sobre as cordas esticadas feitas de crinas dos cavalos, conseguirei uma escala de 7 notas e posso construir o instrumento musical que quiser.

Um menino que o olhava com admiração passou a desenhar um triangulo ao lado do pentagrama do mestre e questionou qual era a relação dos lados daquela forma geométrica, quando um dos angulos era um angulo reto.

O mestre rabiscou a equação entre as duas figuras no chão e todos contemplaram aquele momento de sabedoria. O teorema de Pitágoras foi de suma importância para a definição da matemática como ciência da humanidade.

O mesmo menino nos observou e antes que fugissemos apavorados, trouxe-nos um pote de água. Sob o calor do Mediterrâneo, aquele grupo foi uma das melhores passagens que tivemos em nossa escala de aventuras.

- Para onde vamos ? ela me perguntou.

Fiquei quieto por alguns instantes, encostei meu corpo ao dela e permanecemos ali mais alguns dias.

Bahnhof#14 - A velocidade da lâmina

de: dezembro 1941

para: 1793

Mudar não significa apenas fazer o que o outro fazia, mas fazer de forma diferente, convincente, nem sempre mais prática, nem sempre mais ampla. Mas precisamos mudar sempre. Faz parte da natureza animal.


Revolver é perseverar nessa mudança todo dia. Cada vez que salto no tempo, tento aprender, compreender os movimentos instantâneos que ocorrem. Tento me adaptar às revoluções de cada momento histórico.

A cena daquela mulher subindo os degraus e ajoelhando de maneira singela sob a grande trave de madeira é algo que eu e minha companheira não esqueceremos jamais. Os comentários dos que assistiram a cena conosco é de que ela e sua família eram extremamente injustos com os trabalhadores. Uma mulher tão bem vestida... Parece-me que muita coisa não mudou desde então. A tal Revolução Francesa trouxe muitos benefícios democráticos a quem ? Aos novos que assumiram o poder ?

Não ficou muito claro para nós toda aquela balburdia e como reles cobaias entre tantas ratazanas parisienses, vasculhamos os porões do Palácio de Versalhes para encontrar queijos e conservas. Não nos interessava a tranquilidade dos sonos dos justos.


A sensação inflamada pelos gritos e correrias de todos é que a partir daquele ato, a riqueza deslumbrante seria distribuida igualmente para todos.


Igualdade, fraternidade e liberdade.
Quase peguei um brioche para comer com o queijo, mas desisti.




Um dia, no meio de canhões em uma ilha paradisíaca e no dia seguinte, cabeças rolando no ritmo da guilhotina. Vamos procurar um lugar mais tranquilo para comer.


A minha companheira continua muda e assustada. Mas não está mais tão faminta.

segunda-feira, setembro 21, 2009

Bahnhof#13 - Sossego Paradisíaco

de: 1941
para: dezembro 1941

Não variei de ano com receio de acontecesse alguma coisa com ela.

Me desloquei até uma paradisíaca ilha do Pacífico para ficarmos tranquilos, sossegados, enquanto ela própria recupera a respiração e desenvolve confiança em mim, seu novo companheiro.

- Voce está bem ?

Exausta, nem responde. Me olha desanimada. Quando tento me afastar, ela me puxa lentamente ao seu encontro e fecha os olhos. Dúvida de deixar ir, querer ficar.

À sombra dos coqueiros o barulho do mar é agradável e com certeza o local escolhido foi excelente. O arquipélago havaiano é uma das mais belas obras da natureza desse planeta.

Ela agora descansa e vou procurar comida saindo um pouco da praia de Waikiki, uma das mais habitadas da ilha de Oahu. Poderia viver com ela aqui para sempre. Poderíamos mudar de praia quando nós... um zumbido sendo amplificado a partir de pontos no horizonte vindo em nossa direção... o que são essas máquinas voadoras ?

Meus pelos arrepiados lançam-me de volta ao encontro dela enquanto escuto barulhos ensurdecedores de explosões ao longe. Ela está acordada e assustada.

Vamos partir novamente, para outra data. Parece que os homens adoraram expandir a guerra além das fronteiras da compreensão racional.

O arquipélago irá para os ares e nós iremos embora antes que isso aconteça. Do jeito que os homens são, no futuro esse ataque irá se transformar em atração turística. Não duvido nem um pouco.

Sequencia de botões e partir mais uma vez.

quarta-feira, setembro 02, 2009

Bahnhof#12 - A Companheira

de: abril 1500
para: 1941

Não me acostumo com os largos saltos no tempo...

Mas não consigo me acostumar com a idéia de que não consigo encontrar o Prof. Manrat na própria terra dele.

A guerra continua e a confusão de braços, pernas, mutiladas, ensanguentadas, confunde cada vez mais a minha lógica animal de querer e poder encontrar meu cuidador.

O laboratório continua destroçado e acho que nunca mais ele retornou ao local.

Vejo no canto esquerdo um movimento.
Minúsculo, pendular.
Me aproximo e vejo um ser, parecido comigo, mas fêmea.
Assustada mas consolada em ver algo parecido com ela, ou seja, eu.

Não me recordo dessa criatura. Deve ter aparecido de fora ou é fruto das experiências do Prof. Manrat.

Está muda. E assustada.

Aproximo-me dela e nos encostamos. É bom sentir calor externo novamente. As mãos do professor sempre me faziam carinho antes e depois dos experimentos. Sinto falta dele.

Ficamos imóveis por diversos minutos, sentindo a pulsação, trocando calor, respiração, ofegantes entre os escombros humanos de um local abandonado. Ela estava só. Eu navego só.

Vou levá-la comigo.
Será que cabe na máquina ?
Não custa tentar.

- Voce quer vir ?
Ela veio. Vamos...

Bahnhof#11 - As virgens da praia

de: 1656
para: abril 1500

O balanço do mar deixa a maioria da tripulação enjoada e posso dizer que essa viagem não pode ser definida como um cruzeiro através do oceano Atlântico.

Dias sem ter o que fazer em busca de uma ilhota, de um horizonte diferente dessa quantidade absurda de água.

Estou dormindo desde ontem à noite no porão, com certo receio de virar comida dos marujos, mas com a curiosidade, que tantos gatos já matou, para ver o que acontece.

Tem um senhor escritor, que não pára de anotar as passagens da viagem e um outro, mais imponente, chamado de Capitão Cabral pelos outros, que não desiste de olhar para o infinito.

No meio da tarde seguinte, avistaram algumas gaivotas, um pedaço de terra, um monte que chamaram de Pascoal e praias lindas. Parece até um porto seguro.

Contornaram os arrecifes, desceram em botes e trocaram as primeiras experiências com os habitantes semi-nus daquela terra enorme. Parecem ser pessoas boas, inocentes, diria até pueris.

Acho que eles estão trocando papagaio por pardal e irão se arrepender, mas descobrir terras tem dessas coisas: quem vive na terra morre e o explorador, explora mesmo.

Vou correr um pouco pela praia e voltar para a nau antes que seja tarde demais para mim, afinal estou nú.

Prof. Manrat adoraria esse lugar diferente...

segunda-feira, agosto 31, 2009

Bahnhorf#10 - As meninas

de: 30
para: 1656


O cachorro não pára de olhar para mim.
Fixo o meu olhar nele também.
Tenho medo.

Sei que na sala ao lado fica a despensa da comida e vou conseguir o que preciso, mas para isso, tenho que ir até lá e passar pelo cachorro que parece tranquilo para os outros, mas não tira os olhos de mim. Preciso ter atenção.

Ao fundo, no vão da escada, o homem me assiste sem me importunar. Ele sabe da minha presença inesperada no lugar. Lembra o rosto do Prof. Manrat.

Atrás de mim o casal real olha a cena familiar. Posso vê-los no espelho.

Os cabelos da infanta Margarida são fios de ouro ondulados e inebriantes. As anãs fazem pose sem parecerem bobas da corte.

Velasquez poderia dar um tempo na sua arte para que todos se movimentassem e esse cão sumisse da minha frente. Acho que não vou conseguir nada para comer por aqui.

Apenas contemplar essa cena maravilhosa e inesquecível, digna de uma sala especial de um museu no futuro.

Só poderia considerá-la uma obra prima se conseguisse pegar um resto de bolo, mas...

Bahnhof#9 - O sal da montanha

de: ?
para: 30

O número de pessoas na montanha passava de mil.

Do fundo não conseguia ver o centro da atenção e muito menos escutar o que todos observavam com o silêncio da alma.

Passei entre as pernas, as mochilas e bastões, pelas crianças e idosos. Me aproximei daquele homem pardo que falava mansamente sobre ser bem aventurado.

Tanta coisa importante que ele pronunciou e me lembro claramente do "felizes os que que tem fome e sede de justiça, porque serão saciados."

Falou em saciar a esperança, a vontade de ver um mundo melhor, espalhar a misericórdia por todos os terrenos mundanos. Ser sal da terra.

Até esqueci da minha fome animal.
Me alimentei das palavras lindas e densas, como maná dos céus.

Voltei para o fundo, a voz dele foi sumindo, as palavras jamais.
Lembrei-me do Prof. Manrat e sua calma, seu carinho para comigo.

Botões em sequencia e a montanha ficará para trás.

Bahnhof#8 - Dores

de: 1912
para: ?

Agora são raros os momentos de convulsão mas muitas vezes sinto dores terríveis na cabeça.

Intermináveis apitos agudos me assolam e perco a noção do tempo, a vontade de me alimentar e a agradável ansiedade de conhecer pessoas e lugares.

Sei que as embolizações feitas pelo Prof. Manrat no laboratório foram de relativo sucesso mas apenas eu sei o que me dói, o que me perturba, a angústia da dor inesperada. Meu corpo fica encharcado de um suor inesperado e incontrolado.

Fecho os olhos, cerro os dentes, tento respirar mais tranquilamente.

Do mesmo jeito que a dor vem, ela vai.
O jeito é ir.
O jeito é continuar a viagem sem stress.

terça-feira, agosto 18, 2009

Bahnhof#7 - O Majestoso

de: 1579
para: 1912

O salto no tempo foi grande.
Dez ou quinze minutos de tonteira e pronto, estou em um dos meus locais prediletos para conseguir alimento fresco e saudável: o cais.

Pode ser de rio ou de mar, mas prefiro o marítimo: a imensidão da água, a quantidade de sementes disponíveis e encontro outros seres parecidos comigo a correr no escuro dos armazéns.

Estou no porto de Southampton, Inglaterra, de barriga cheia, vendo a movimentação frenética dos seres humanos embarcando nos navios com suas malas cheias de roupa. Não preciso de malas, não preciso de roupas. Sou despojado.

Aquele navio com 4 grandes chaminés coloridas me chamou a atenção. É muito grande. É majestoso. Alguns roedores embarcam pelas cordas em direção à embarcação. Tenho vontade, mas não posso abandonar minha máquina temporal. São coisas que não posso me dar ao luxo de arriscar. Entro, não consigo sair e ficarei o resto da minha vida em um lugar só.

E se o barco afunda ? Nem pensar. Fica o desejo de navegar por esse mar gelado. A impressão que dá é que os botes salva-vidas não comportarão as mais de 3.500 pessoas que embarcam no maior objeto móvel construído até hoje pelo homem.

Ainda consigo ver o nome do navio ao deixar o cais: Titanic.

Nunca mais vou me esquecer da imagem daquele barco sumindo no horizonte em direção a outros portos. Deve ser muito interessante viajar assim. Mas vou ficando por aqui em terra firme.

Botões vermelho, branco e vermelho e espero que todos cheguem bem ao destino que a vida reserva a cada um.

terça-feira, agosto 11, 2009

Bahnhof#6 - Mensageiro das Estrelas

de: 2002
para: 1579

Resolvi mudar de século, mas não de país. Permanecerei na Itália para não perder os timbres de Enio.

O salto de centenas de anos me deixa sem condições de raciocínio. Fico quase 15 minutos em transe indesejável.
Desperto e disparo pelas ruelas da cidade.

Passeio pela instabilidade do solo arenoso de Pisa e ligo as paredes das casas rapido e silenciosamente. Procuro por alimentação. Encontro com facilidade.

Quando estou cansado ou com fome, lembro de Prof. Manrat. Onde estará ? Mistura de saudade e despreparo emocional para essa navegação temporal.
A torre liga a terra ao céu. Canal entre o fato e o divino.

Olho as estrelas radiantes que cortejam a destemida lua cheia que por sua vez banha a Praça dos Milagres sem pressa ao longo da noite. As noites escuras são mais longas. A lua acha que não será desvendada tão cedo. Tolice.

Sobre a sombra da torre, já torta desde meados do século 12, o filho de Vincenzo, um menino iluminado, observa o céu. Fecha os dedos tocando a palma formando um círculo com a mão e coloca sobre os olhos para ver melhor o céu escuro e suas nuances.
Olho seu silêncio genial.
Está extasiado pelas descobertas celestiais.

Fico pensando: quando Galileu crescer, irá contestar Aristóteles, construir a primeira luneta astronômica, apoiar Copérnico e enfrentar a inquisição, simplesmente porque parou para contemplar a bola branca enorme no manto escuro da noite ?

Percebo que a criança será o verdadeiro Sidereus Nuntius (Mensageiro das Estrelas) de toda a humanidade. E ele sabe disso. Abaixa as mãos, rabisca inúmeros números no chão como se fosse uma romance sem fim. A matemática para Galileu é o alfabeto com que Deus escreveu o universo.

Olha para o céu, para o chão, diversas vezes, sorrindo em minha direção, fala:

- Não me sinto obrigado a acreditar que o mesmo Deus que me dotou de sentidos, razão e intelecto, pretenda que eu não os utilize.

Antes que ele os utilizasse em me capturar, corro sob o luar em direção ao rio, sem olhar para trás ou para as estrelas. Nas margens do rio tem sempre resto de comida.

domingo, agosto 02, 2009

Bahnhof#5 - A Missão

de: julho 2009
para: 2002

Entro sorrateiramente pela platéia e me escondo entre as poltronas durante o ensaio na Arena di Verona.
Que lugar lindo !!! Deve ter resto de comida em algum canto.

No palco, o maestro de óculos conduz o ensaio da 0rquestra nos acordes da maravilhosa trilha sonora do filme A Missão, de 1986 do diretor Roland Joffé, para a apresentação triunfal da noite.

Enquanto flutuo entre os acordes pujantes lembro que Enio Morricone nunca ganhou um Oscar por trilha sonora. Os premios inventados pelos humanos não significam nada. Bah !!!

A missão de Enio, além de trabalhar com mestres da direção como Pasolini, De Palma, Tornatore, Roland Joffé, Tinto Brass, Bertolucci, Lina Wertmuller, Polanski, Almodovar e Sérgio Leone, talvez tenha sido congelar para sempre os sustenidos em nossos ouvidos na sala escura do cinema.

Ficaria aqui para sempre, beliscando migalhas de harmonia do naipe de cordas. Não tenho mãos para tocar nenhum instrumento, mas tenho ouvidos para ser agraciado com a música dos deuses.

Acho que tem resto de chocolate no fim dessa fileira.

Mi vermelho, sol branco, si azul.

sábado, julho 25, 2009

Bahnhof#4 - O Jogo do Poder

de: outubro 1989
para: julho 2009
Toda vez que navego por mais de 15 anos, chego ao destino cansado, com um pouco de tontura e ansioso. Não sei se é o meu metabolismo simplório de cobaia, saudade do professor Manrat ou enjôo ao me deparar com as principais manchetes não éticas nos jornais.

Não consegui entender: o atual presidente do Brasil, Sr. Luis Inácio Lula da Silva, agradece em público em ato notório, o apoio que tem recebido do Sr. Fernando Collor de Mello, ex-presidente do país que teve a honra particular de tomar um impeachment no Congresso, em uma visita recente ao reduto de eleitores nordestinos.

Lembro-me de uma camisa que roí há um tempo atrás na casa da Dinda que dizia "O tempo é o senhor da razão."
As coisas funcionam assim entre os homens: inimigos mortais um dia em termos políticos, aliados (i)morais amanhã.
Um verdadeiro liquidificador de ideais, uma máquina de horrores. Jamais assisti a esse tipo de experimento no laboratório do professor.

Vou-me embora para Pasárgada antes que o presidente (o atual) sustente o Sr. José Sarney que apoiou o golpe militar de 64 e vive até hoje explorando a capital São Luis, o Maranhão, o Norte e Nordeste do Brasil, o Senado, Brasília e onde puder fincar seu falar manso, seu bigode e suas poesias de fardão de academia.
Possuo bigode também, mas tenho esperança.
Basta de apoio à políticos super ratos.
Preciso respirar, preciso um pouco da verdadeira poesia e de música.
E onde foi parar a tal Marília ?

quinta-feira, julho 23, 2009

Bahnhof#3 - O Debate

de: 1963
para: outubro 1989

Todo o povo, esperançoso, olha a TV.
O debate presidencial esperado transmitido para todo o país. Não precisa ser rico, pode até ser pobre, basta um aparelho na sala, ouvidos e escolher certo no dia da eleição.
Não precisa nem ser gente. Basta ser rato.

No Brasil as coisas poderiam ser simples como esse ou aquele, certo ou errado. No mundo poderia ser assim mas o poder da mídia é incontrolável por quem manda e quem assiste. Basta uma edição criteriosa nos bastidores e o que foi dito fica como não dito. O que foi prometido não existe mais. A falha vira tempestade e o crime vira detalhe.

Parece-me que qualquer um dos dois, o de barba e o sem barba, irão resolver as questões que tanto castigam o maior país da América do Sul.

Estou curioso para saber o que vingou.
Vou ficar com saudade da tal Marília...

Bahnhof#2 - Uma linda mulher

de: 1941
para: novembro 1963

O prédio público que serve de depósito de livros está praticamente vazio. Isso significa bastante papel para ser roído.

Estou no parapeito da janela central do 6ª andar e o dia está lindo em Dallas.
À minha esquerda, um rapaz chamado Lee, olha com atenção a paisagem pintada de asfalto, pessoas e verde do parque.

À direita, um jovem Stan trêmulo e na última janela, o veterano conhecido por Mister Gun de óculos e boné. Lembra até um pouco o professor Manrat. Todos estão armados e prontos para dar um tiro apenas cada um.

No andar de baixo, mais duas janelas preenchidas com atiradores de elite. Desconheço o nome deles. Todos olham a avenida. Nas calçadas, a pequena multidão de senhoras, estudantes de bandeirinhas americanas na mão, esperam o reluzente conversível dobrar a esquina.

Surge o carro.
O casal cumprimenta a todos com um sorriso presidencial.
Os homens no prédio se posicionam e ignoram a minha presença.
A fome aperta mas vou aguardar o desenrolar da trama pois sinto que algo de ruim irá acontecer. Me lembra os dias após a invasão da Polonia.
Por que nesses momentos ninguém aparecerá para impedir a tragédia ? Onde se esconde a raça humana em situações tristes ?

Tomo um susto quando disparam sincronizados em direção ao banco de trás do carro oficial.
Tres tiros acertam o presidente.

Se afastam das janelas em silêncio tenso.
Mister Gun ordena que Lee deixe sua arma italiana perto da janela (para que ?) e que saia discretamente para a rua.
- Vá se esconder no cinema como se nada tivesse acontecido, ok ?
Os outros atiradores permanecem e reunem-se no andar debaixo. Ficam aguardando ordens superiores. Silêncio total. No 6º andar, no prédio, no meu estomago, em Dallas .

Substituo a imagem ensaiada do ballet dos homens atirando, pelo da mulher elegante e desesperada, recolhendo fragmentos do corpo do marido enquanto o carro preto dispara pela avenida.

Mudam os países, os idiomas, os personagens, a dimensão dos acontecimentos, mas a violência é característica dos homens. Eu não sou assim. Os meses em laboratório alimentado com drogas que nunca consegui evitar me deixaram mais tranquilo a esse tipo de reação selvagem. Só tenho fome. Vou até a caixa dos livros no canto do 6º andar para roer algo que me sirva.

Depois de saciado, irei partir com a imagem daquela lmulher.
Uma bela viúva desejável vestida de rosa-sangue.
O primeiro botão é vermelho.
Despois branco e depois azul.

segunda-feira, julho 20, 2009

Bahnhof#1 - A guerra continua

de: 1939
para: 1941

A guerra continua.
A cidade está dizimada.
Milhares de mortes desnecessárias. Até quando ?

Anseio por uma cena leve, um encontro no meio da rua, um curto sinal de luz entre tantas desesperanças.
Se os homens soubessem que bastam beijos de paz entre os revoltos sons da guerra.

O laboratório ainda existe mas está totalmente abandonado.
As outras cobaias desapareceram e não encontrei professor Manrat.
Estará vivo ou entrou na guerra como soldado raso ou pesquisador de elite do governo ?
Espero que não tenha morrido.
Ou como os homens dizem: "morrido em vão".
Prefiro viver em vão. Sobreviver.

Não vou apertar o botão verde e ficarei os tais 45 segundos mínimos obrigatórios para cada parada da máquina.
Torço para que nenhuma bomba caia perto de mim.
Seria espetacular uma bomba para uma reles cobaia como eu.
Coisas do gênero humano.

Depois mudo de década, de continente, tomo outros rumos, outros ares.

Bahnhof#0 - O início de tudo

Setembro de 1939

A situação não está fácil: racionamento de energia elétrica, corte na ração, o professor anda tenso durante as pesquisas.
Na semana passada a Alemanha invadiu a Polonia.
Eu sou um pedaço da Alemanha e não queria invadir ninguém.
Quem poderá prever quando esse exército indesejado invadirá o nosso laboratório ? Quem deu autorização aos nazistas para que façam isso deliberadamente ?

Ah, esses seres humanos em cornucópias de desespero saboreando o inferno que está por vir. Sinto isso a cada instante.

A Máquina de Deslocamento Temporal do professor Arzt Manrat está pronta.
Ele não pode afirmar se ela funciona plenamente, mas eu sei disso.
Tantos testes fez comigo, tantos lugares conheci, mesmo por míseros segundos e sempre voltei para o laboratório, são e salvo.
Vou levar alguns biscoitos. Isso basta de início.
Sei que ele não ficará muito feliz com a minha decisão de pegar sua máquina mas não estar aqui nos dias negros que estão por vir.
Prefiro viajar sem rumo.
Quem sabe ele ainda tenha tempo de construir uma outra máquina em que caiba seu esquisito e grande corpo humanóide e viaje pelo tempo como estou fazendo agora.

No momento preciso sair daqui e não é questão de covardia. É questão de sobrevivência.
Afinal, cobaias não tem família, não tem relações duradouras, não tem amor esperando para dizer boa noite. Cobaias não tem futuro. Somos seres descartáveis de experiências humanas.

O inverno dos homens marchando está chegando.
Uma
segunda guerra insuportável cerca o continente.
Prof. Manrat vive praguejando em voz alta por esse porão que a guerra do início do século deveria ter sido a última. Mas parece que será mais uma.

É chegada a hora.
Vou partir.
Não para muito longe, talvez 1941 ou 43.
Com certeza esse tumulto terá terminado e posso rever o professor.
Assim espero.
Botão vermelho primeiro, botão branco e por último o azul.